Agência Brasil – Como você reagiu à notícia dos assassinatos do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, em junho de 2022?
Agência Brasil – Quais as causas dessa violência que o senhor diz ser “primitiva”? O que motiva tantas ameaças, agressões e assassinatos de líderes comunitários, defensores dos direitos humanos e jornalistas que atuam na Amazônia?
Lúcio Flávio – É uma violência estrutural. Sempre houve problemas e conflitos, mas acho que eles se intensificaram a partir do governo de Juscelino Kubitschek [1956/1961], quando o Estado decidiu integrar a região ao resto do país. Para isso, construiu as estradas Belém-Brasília [BR-153] e a BR-29 [atual BR-364], que liga Brasília a Rio Branco. Isso representou uma mudança brutal. Até então, a ocupação da região se restringia às áreas navegáveis próximas ao leito dos rios, uma faixa de algumas dezenas de quilômetros. As terras mais distantes, de difícil acesso, onde a maioria das populações indígenas estava concentrada, era praticamente ignorada. As estradas impuseram outro ritmo civilizatório, mudando o eixo de ocupação da região e favorecendo o maior processo de desmatamento da história da humanidade. Nunca tanta floresta tinha sido derrubada [em tão pouco tempo], com todos os efeitos ambientais, sociais e políticos resultantes. Ou seja, a violência regional não é produto de uma psicologia individual, de uma patologia individual. Ela é produto de uma filosofia de ocupação da região. O modelo de desenvolvimento da Amazônia é o caos: instaura-se o caos e deste decorrem todos os desdobramentos de que estamos falando.
Agência Brasil – E muitos dos argumentos apresentados para integrar a Amazônia, não necessariamente ao restante do país, mas sim a um projeto de desenvolvimento econômico, continuam sendo repetidos ainda hoje, não?
Lúcio Flávio – Sim. Por ser muito extensa; subpovoada e ameaçada pela cobiça externa, a Amazônia era considerada uma região problema. Suas próprias características naturais eram consideradas um entrave à expansão das frentes econômicas que avançavam de outras partes. Então, a diretriz era ocupar a Amazônia. Inclusive para afastar o risco de uma invasão estrangeira – esta conversa que vem de longo tempo e que, em 2002, motivou a criação do Sivam [Sistema de Vigilância da Amazônia]. Só que a integração exigia que se estabelecesse um valor [financeiro] para a terra. E, inicialmente, só tinha direito a expandir sua propriedade aquele [posseiro] que derrubasse a floresta, estabelecendo benfeitorias. Então, quem vinha de outras regiões para se estabelecer, via na floresta um estorvo e considerava que tinha que desmatar. Some-se a isso o fato de que a cultura local era desprezada, era considerada [expressão de] uma cultura pré-capitalista, primitiva, que não tinha escala e valor de mercado. Deu no que deu. Queriam que a região fosse tal e qual o resto do país? Mas o que é o Brasil [em termos ambientais] para além da Amazônia? É o país do desmatamento, que explorou os recursos naturais de outros biomas, como a Mata Atlântica, até quase a extinção. O [dramaturgo alemão] Bertold Brecht tem uma frase maravilhosa que ajuda a pensarmos nas causas dessa violência: “todos condenam um rio por ser violento, mas ninguém condena as margens que o comprimem”.
Agência Brasil – Nesse contexto, quais são os principais desafios para a cobertura jornalística na Amazônia?
Lúcio Flávio – Justamente o fato de a região ser extremamente violenta. Uma violência que pode se manifestar de forma explícita, como nos assassinatos, mas também de maneira sutil. Qualquer que seja o caso, ela é responsável por um estado de tensão permanente. O que exigiria uma forte presença do Estado, com uma atuação técnica e imparcial, o que não ocorre. Ao longo dos tempos, o Estado assumiu uma posição de franca hostilidade aos direitos – seja o direito das pessoas à natureza, seja o direito à vida. O fato se agravou enormemente no governo de Jair Bolsonaro, durante o qual houve, em [agosto de] 2019, o famigerado Dia do Fogo, quando [um grupo de] fazendeiros de Novo Progresso, no Pará, resolveu queimar a floresta. Nunca houve nada igual a isso.
Agência Brasil – O senhor disse que, historicamente, os saberes, a inteligência local, foram desprezados. Isso se aplica à prática jornalística, que muitos afirmam tratar a Amazônia de forma episódica e reducionista?
Lúcio Flávio – Tenho aqui comigo algumas edições de 1975 do jornal O Estado de São Paulo, para o qual trabalhei por 18 anos. Bem, em uma só semana, publicamos 12 páginas sobre a Amazônia. Na época, o jornal era uma fonte indispensável [de informações] para trabalhos acadêmicos e para o próprio governo. Se você ler muitas das matérias que o jornal publicou até o início dos anos 1980, vai ver que elas atacam o modelo de desenvolvimento econômico [que se buscava implantar na] região, defendem os posseiros e os índios. Ainda assim, em plena ditadura, militares de alta patente diziam que não deixariam que fossemos censurados por compreenderem que oferecíamos uma outra forma deles saberem mais sobre o que estava acontecendo na região. Hoje, a meu ver, as matérias contêm muito menos informação. Em parte porque a insegurança do jornalista é visível. Eu mesmo já fui ameaçado de morte, agredido, processado, mas estou certo de que se fosse repetir o que fiz entre 1970 e 1990, não estaria vivo. E há também os fatores econômicos. Para dar conta da realidade, o jornalista tem que viajar muito. E viajar pela Amazônia é caro. Em 1976, passei 12 dias viajando em um barco fretado pelo jornal. Eu frequentemente viajava para lugares onde só chegávamos em aviões fretados. Essa estrutura não existe mais no jornalismo. De forma geral, as empresas [de comunicação] não estão mais dispostas a gastar esse dinheiro. Então, recorrem a material de arquivo, a entrevistas, filmes. Só que, mesmo com as facilidades criadas pelas modernas ferramentas de comunicação, o que garante a força do jornalismo é estar no local dos fatos, na hora em que eles acontecem. Isso está cada vez mais difícil.
Agência Brasil – E a cobertura dos veículos de mídia regionais, que têm menos recursos e, em geral, estão ainda mais sujeitos às pressões e aos interesses locais? Os veículos regionais dão conta de informar a população da Amazônia sobre os desafios da região?
Lúcio Flávio – A pior cobertura sobre a Amazônia é a feita pelos veículos da própria Amazônia. Em primeiro lugar porque eles não querem [ou não têm como] gastar dinheiro. A maior parte das matérias sobre acontecimentos ocorridos no interior da Amazônia vem das grandes agências de notícias, ou seja, de fora, e não dos jornais locais. E há ainda aqueles veículos que estão comprometidos com governos e com outros anunciantes. Para mim, a imprensa regional simplesmente perdeu o tom da cobertura da Amazônia. Ao menos quando se trata dos temas que estamos discutindo aqui. Quem é o grande repórter de Amazônia? O Dom, por exemplo, era do [jornal britânico] The Guardian. Hoje, eu frequentemente leio no The New York Times [dos Estados Unidos} ou no El País [da Espanha] notícias que não saem nos veículos da Amazônia e até mesmo do Brasil.
Agência Brasil – O que fazer para reduzir esta violência que, como você disse, não é só explícita, se acirrou ao longo dos anos e afeta a todos, indistintamente, em maior ou menor grau?
Lúcio Flávio - Se os enclaves em Carajás, no Trombetas, em Canaã, seguirem produzindo bens intensivos aceitos no mercado internacional, os sucessivos governos não estarão nem aí para os conflitos episódicos, para a morte de índios e de jornalistas. A função da Amazônia seguirá sendo exportar produtos primários que gerem receitas. Mesmo com toda a receptividade mundial ao discurso em prol da proteção amazônica, vejo com extremo pessimismo o futuro da região. Trabalho na Amazônia há 57 anos. Antes eu viajava sozinho por áreas inóspitas, enfrentando dificuldades de todo tipo. Hoje, não faria mais isso. Porque, hoje, se um jornalista incomodar os senhores rurais da região, corre o risco de ser morto brutalmente, como o Dom Phillips, o Bruno Pereira e tantos outros.